terça-feira, 30 de junho de 2009

Cansaço



O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.



A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.


Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...



E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssim
Cansaço

Álvaro de Campos
Heterónimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Porque...




Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.


Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigo
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia de Mello Breyner Anderson
Imagem retirada da net : desconheço o autor

domingo, 21 de junho de 2009

Urgentemente



É urgente o amor
É urgente um barco no mar


É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.



É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras.


Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.


Eugénio de Andrade
Fotografia retirada da net : desconheço o autor

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Canção Inocente






Menino: queres ser meu mestre?
- Contigo teria tanto que aprender!
A ser casto, sem querer;
a ser bom, sem o saber;
a ser alegre, sem ter motivos para o ser.



Menino: queres ser meu mestre?
- Deixa o teu arco aí.
Vem-me ensinar a sorrir e a confiar;
a ter esperança e a perdoar;
a esquecer e a chorar...


Menino, que brincas no jardim:
- Tu sim, podias ser um mestre para mim!



Carlos Queirós

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Quantas vezes, Amor, me tens ferido?




Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido

Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado
Depois com ferros vis se vê cingido

Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida
Este intervalo da existência à morte!

Travam-se gosto, e dor; sossego e lida;
É lei da natureza, é lei da sorte
Que seja o mal e o bem matiz da vida

Bocage





sábado, 13 de junho de 2009

Os putos

Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto.


Uma fisga que atira a esperança
Um pardal de calções, astuto
E a força de ser criança
Contra a força dum chui, que é bruto.


Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens.


As caricas brilhando na mão
A vontade que salta ao eixo
Um puto que diz que não
Se a porrada vier não deixo


Um berlinde abafado na escola
Um pião na algibeira sem cor
Um puto que pede esmola
Porque a fome lhe abafa a dor.


José Carlos Ary dos Santos



Imagem Retirada da Net : desconheço o autor

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Pedra Filosofal















Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.



eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.



Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.




Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.








António Gedeão

Imagem Retirada da net desconheço o autor



segunda-feira, 8 de junho de 2009

O Perfume

O que sou eu? – O Perfume,
Dizem os homens. – Serei.
Mas o que sou nem eu sei…
Sou uma sombra de lume!



Rasgo a aragem como um gume
De espada: Subi. Voei.
Onde passava, deixei
A essência que me resume.

Liberdade, eu me cativo:
Numa renda, um nada, eu vivo
Vida de Sonho e Verdade!



Passam os dias, e em vão!
Eu sou a Recordação;
Sou mais, ainda: a Saudade.




António Correia de Oliveira





Imagem retirada da internet ( desconheço o autor )






domingo, 7 de junho de 2009

Ao meu amigo

Fiel ao costume antigo,
Trago ao meu jovem amigo
Versos próprios deste dia.
E que de os ver tão singelos,
Tão simples como eu, não ria:
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.



Que sobre a flor de seus anos
Soprem tarde os desenganos;
Que em torno os bafeje amor,
Amor da esposa querida,
Prolongando a doce vida
Fruto que suceda à flor.



Recebe este voto, amigo,
Que eu, fiel ao uso antigo,
Quis trazer-te neste dia
Em poucos versos singelos.
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.


Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Uma Flor !

Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor!
Dá-se-lhe papel e lápis.
A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas.

Umas numa direcção , outras noutras;
umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas.
A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas.

Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares,
mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor







Almada Negreiros


Imagem retirada da internet descoheço o autor.